quinta-feira, 12 de novembro de 2015

ARGENTINO HOTEL: UM ÍCONE FORA DE LUGAR


                                                                               

A preservação do patrimônio histórico é um tema importantíssimo. Além da iniciativa do Estado e dos recursos públicos indispensáveis à continuidade da tarefa, esta tem um elemento de cidadania que não pode nem deve ser ignorado. O patrimônio é responsável pela continuidade histórica de um povo, de sua identidade cultural. Ademais, cria personalidades únicas para cada cidade, favorece a orientação e a apreensão do espaço urbano.
Todos os brasileiros, e os cariocas em particular, devem se lembrar da ameaça de demolição do Copacabana Palace Hotel há algumas décadas atrás, quando os descendentes de Octávio Guinle, proprietários do imóvel em plena crise financeira, decidiram colocá-lo à venda para dar lugar a um condomínio à beira-mar. Os moradores do bairro se mobilizaram e apelaram formalmente à Justiça por meio de ação popular para evitar aquela verdadeira iniquidade, cujo seguimento colocaria abaixo um edifício emblemático inaugurado em 1923, indiscutível patrimônio da Cidade Maravilhosa.
Entre outros fatores, a salvação do prédio deveu-se ao mesmo regime militar que decretou a demolição do Palácio Monroe. Foi o Presidente Ernesto Geisel que evitou o desastre pretendido pela especulação imobiliária, ao tombar o Copacabana Palace e incluí-lo na lista dos bens patrimoniais e culturais brasileiros a preservar. O hotel familiar foi finalmente vendido em 1989 ao grupo Oriente-Express que o reabilitou, modernizando as instalações sem descaracterizá-las.
  
Falo de patrimônio e recordo esses fatos para referir-me a uma edificação semelhante que conheci recentemente na zona balneária uruguaia, entre Montevidéu e Punta del Leste. Trata-se do Argentino Hotel, localizado desde 1930 em Piriápolis. O nome oficial da localidade é uma homenagem ao empresário uruguaio Francisco Piria, que chegou ao local pela primeira vez em 1890, comprou grandes extensões de terra, construiu a cidade que ele idealizou para ser o melhor e mais concorrido balneário da América do Sul, e dotou-a em 1930 de um gigantesco, luxuoso e confortável hotel de dimensões só compatíveis com o número de abastados visitantes que o proprietário pretendia atrair à região, sobretudo argentinos.



Milionário e de espírito contemplativo, Piria não conhecia o Brasil, infelizmente. Se tivesse aportado algum dia no Rio de Janeiro e visto a praia de Copacabana do início do século XX, ali teria certamente assentado os seus arraiais e visualizado o verdadeiro futuro. Ao invés do magnata Octávio Guinle, poderia ter sido ele o empresário convidado pelo Governo Epitácio Pessoa para a epopeia de urbanização do areal que definia o bairro, tendo como marco a construção de um hotel de luxo, elegante e majestoso como os da Riviera Francesa, a fim de abrigar visitantes ilustres, tornar-se uma referência da cidade e atrair o interesse do mundo. 

                                                                   


A julgar pelo que ainda se vê e se experimenta no Argentino Hotel, Piria sempre sonhou com o melhor. E não mediu esforços nem recursos para lográ-lo, inspirado também nos edifícios similares em que ele próprio se hospedava com a família na Europa mediterrânea, particularmente o Necresco em Nice (de 1913, com 141 quartos) e o Carlton em Cannes (de 1911, com 343 quartos). A obra de seis andares teve um custo descomunal e demorou dez anos para ser terminada, após a conclusão do primeiro campeonato mundial de futebol promovido pela FIFA no Uruguai. Contratou-se para executá-la o arquiteto francês radicado em Buenos Aires, Pierre Guichot. Para assegurar a atmosfera e o serviço de luxo do seu hotel uruguaio, Piria trouxe do Velho Mundo diferentes mármores, vitrais, esculturas, mobiliário austríaco de época, louçaria e prataria alemãs monogramadas, cristaleria checa e roupa de cama italiana de extrema qualidade, a fim de adornar os jardins externos e interiores, os salões e refeitórios comuns, os imensos corredores e as centenas de habitações destinadas a 1.200 hóspedes, todas construídas com pé direito muito alto e dimensões palacianas.
                                                                                  



Mas que ironia... Passados quase cem anos, ambos os projetos arquitetônicos e seus respectivos arredores conheceram destinos bem diferentes, com vantagens para o de Copacabana. Apesar de acolhedora, cercada de serras verdejantes e a poucos quilômetros da glamorosa Punta del Leste, a pacata Piriápolis, fundada em 1893 e com apenas oito mil habitantes, não se demonstrou comercialmente compatível com os sonhos do fundador e está longe dos destacados dias de glória no passado. Chamada carinhosamente de ‘La joyita del Este’,  é  um balneário simpático, de pequeno comércio e alguns restaurantes heroicos, entre muitos outros na rota oceânica uruguaia, que em verdade nunca pôde afirmar-se como qualquer coisa além de uma praia a mais durante os meses de verão. De singular, ficou-lhe apenas o atrativo turístico pela suposta aura mística, que muito tem a ver com a personalidade de seu empreendedor originário. A única semelhança conceitual possível entre o Argentino Hotel e o Copacabana Palace é estarem ambos de frente para o mar e terem no entorno uma formação rochosa de grandes dimensões chamada Pão de Açúcar
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Francisco Piria era um homem complexo, por detrás do sucesso empresarial. Há hoje vários livros sobre sua vida e obra, que tentam explicar a vertente misteriosa e desconhecida da sua trajetória até a morte aos 86 anos. Depois de enfrentar uma débâcle econômico-financeira no início da carreira, ergueu-se das cinzas basicamente no ramo imobiliário, comprando terras desabitadas na atual região metropolitana de Montevidéu, que eram loteadas e posteriormente vendidas a preço de ouro. Tornou-se um homem público muito rico, milionário para os padrões uruguaios de fins do século XIX. Seu caráter laborioso e visionário, contudo, sempre esteve permeado pela inclinação a acreditar em forças e entes sobrenaturais.
                                                                 



Adepto da alquimia, da numerologia e da simbologia transcendental, fez delas os elementos norteadores da construção e urbanização da própria Piriápolis. O nome originalmente imaginado por Piria para a sua criação era Heliópolis, a cidade do Sol, mitologicamente associada às moradas filosofais de Fulcanelli e ao renascer da Ave Fênix, símbolo emblemático da regeneração pelo fogo. Tanto no desenho urbanístico da cidade quanto na localização física dos monumentos públicos que a adornam, os visitantes descobrem segredos e curiosidades da simbologia alquímica, além de alusões a elementos templários, que são hoje a sua principal atração.

Tendo por inspiração a Era de Aquário, na qual supostamente estaríamos hoje vivendo e cujo planeta regente é Urano, simbolizado pela letra H, o construtor teria imaginado o plano arquitetônico do monumental Argentino Hotel como uma invocação precisamente dessa letra, como o comprova a vista aérea do edifício. A decoração dos gigantescos vitrais tem várias alusões a delfins, associados à então Era de Peixes que vigia na época da construção. A disposição e numeração dos quartos também estariam influenciadas pela profunda e mística simbologia que Piria deixou plasmada em todos os empreendimentos pessoais e profissionais. E tudo isso sem esquecer os monumentais felinos alados que ladeiam a escalinata frontal do prédio, encomendados por Piria à Fundição Val d’Osne na França, que são hoje interpretados pelos estudiosos como uma referência à fusão do elemento corpóreo-material, representado pelo leão sem juba, com o da elevação espiritual, representado pela águia, apontando para essa síntese necessária ao equilíbrio humano e à conquista integral da consciência.

Contudo, como percebe quem lá se hospeda atualmente, o velho Argentino Hotel, que conheceu o luxo e o glamour, não se pôde furtar aos efeitos desse torvelinho místico que, segundo muitos, foi responsável pelas inúmeras frustrações que se abateram sobre o edifício e a cidade que o abriga, malgrado os fatores associados a seus valores vibratórios de alta qualidade energética e as perspectivas transcendentes que lhes apontavam um grande progresso e êxito internacional. Obviamente superdimensionado no projeto, na execução e, sobretudo, na localização, hoje o estabelecimento é visto apenas como marco importante da cidade e um elemento adicional do patrimônio histórico uruguaio ainda em funcionamento. Tem como fator adicional para a manutenção turística o Cassino em anexo, explorado pelo Estado.

Depois de fechado por décadas e com acentuados sinais de deterioração, o hotel foi colocado à venda pelos descendentes de Francisco Piria e comprado pelo Estado uruguaio em 1946. A administração governamental que se seguiu, como sói acontecer, demonstrou não ser a melhor opção como iniciativa comercial lucrativa. Em 1994, foi cedido por vinte anos à exploração de um grupo hoteleiro uruguaio liderado pela família Méndez Requena que, literalmente, faz o que pode para seguir adiante e manter minimamente o patrimônio. Em 2007, a propriedade do hotel passou às mãos dos gestores da empresa de aviação Pluna, cuja quebra e dissolução só fizeram piorar as perspectivas. Depois de restituído formalmente à propriedade do Estado, foi afinal transformado em Argentino Hotel Casino & Spa, com o resgate da sua atividade pioneira em matéria de Talassoterapia (com piscinas termais de água do mar a 38 graus). Hoje, são ainda necessários grandes esforços para promovê-lo comercialmente, manter os 230 funcionários e assegurar condições mínimas de conservação e funcionamento a partir de escassos recursos.

                                                                     


Concluído o período de concessão no ano passado, no inicio de 2015 foi anunciada uma licitação internacional a ser realizada pelo Governo uruguaio para definir a próxima administração do estabelecimento, tendo como objetivo atrair capitais estrangeiros e alguma rede importante de hotelaria que queira explorar o local. Algo parecido com o que o ocorreu com o Hotel Carrasco de Montevidéu, um patrimônio arquitetônico e cultural também vitimado durante anos pelo abandono e pelo descaso, que em 2009 foi entregue mediante contrato a um grupo empresarial vinculado à Sofitel. Depois de concluídas as muitas obras de remodelação e restauração, o belo edifício foi reinaugurado em 2013 como Hotel Sofitel Montevideo Casino Carrasco & Spa. Mas, segundo consta, continua dando prejuízo.

Embora as autoridades e o empresariado local esperem que sejam mais promissoras as iniciativas futuras relacionadas ao heroico Argentino Hotel, a julgar pelos antecedentes já quase centenários e os exemplos similares que se verificam pelo mundo nessa matéria, suas opções de sucesso dependeriam de um verdadeiro milagre. De uma conjugação virtuosa que englobasse respeito público, responsabilidade governamental, criatividade empresarial e ação concertada da cidadania, semelhante àquela que permitiu salvar do aniquilamento patrimonial, histórico e cultural o nosso Copacabana Palace. Oxalá que as forças do Céu e da Terra conspirem a favor.  
                                                                         
                         Silvio Assumpção

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